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8 de março: um incêndio, algumas bandeiras e diversos significados para nós, mulheres

 

 

“Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.”

 

A poeta Adélia Prado cujo trecho está acima é, como tantas outras, muito citada para referenciar os sentimentos e pensamentos femininos, expressos por meio da Literatura. Em textos como esse, podemos perceber, e tentar compreender, os conflitos que perpassam algumas vivências das mulheres. E é assim que vejo a data de hoje: o 8 de março – Dia Internacional da Mulher, é marcado por contradições e lutas que nem sempre acontecem sob consenso. Tanto os registros sobre o marco histórico quanto os sentidos que se constroem a partir dele são permeados de distorções.

 

Os simbolismos que envolvem o dia de hoje apontam para comemorações (distribuição de agrados, flores e até guloseimas) e reivindicações (as bandeiras dos movimentos feministas são colocadas em evidência),  e, com isso, divergências são dispostas em torno das mulheres, que, como disse a poesia, é uma espécie ainda envergonhada para carregar bandeiras. Adélia nos abre, então, a possibilidade de observarmos esse amálgama que forma as condições tão diversas das mulheres. Para compreender a diversidade que nos envolve, a categoria Gênero passou a ser utilizada de modo a indicar os diversos marcadores socioculturais, políticos, econômicos que formam e conformam as mulheres em diferentes contextos. Se tomarmos como exemplo a conquista pelos direitos civis (o direito ao voto, por exemplo), luta realizada na maioria dos países, no início do século passado, já alcançamos algumas diferenças. Quais eram as mulheres que circulavam nos partidos políticos vivenciando essa conquista? E sobre a inserção no mercado de trabalho? É “justo” considerá-la uma conquista das mulheres, quando muitas de nós, as negras e indígenas, por exemplo, têm trajetórias cuja sobrevivência está atrelada à escravidão, uma marca do passado de nosso país. Nesse sentido, quem lutou pelos processos que envolvem o mundo do trabalho permanece lutando ainda hoje por políticas públicas que possam garantir creches, escolas e acesso à cultura?

 

O 8 de março, dia em que internacionalmente essas e outras questões são problematizadas, consolidou-se como marco nas décadas de 1960 e 1970, quando várias datas anteriores eram lembradas com objetivo de se fazer memória das reivindicações de mulheres trabalhadoras que, desde o século XIX, quando o regime de trabalho fabril se tornou modelo, organizaram passeatas, greves e outras manifestações para conscientizar a sociedade e transformar as situações que as colocavam em vulnerabilidade. Um evento bastante referenciado é o incêndio ocorrido em 25 de março de 1911 nos Estados Unidos, quando 146 trabalhadoras perderam suas vidas. A tragédia resultou em grande comoção, e, a partir daí, os conceitos de segurança no trabalho e responsabilidade social tiveram outra fundamentação. Em muitos lugares, e até mesmo em livros de História, o incêndio é retratado como tendo sido ocorrido em 8 de março.

 

No entanto, para além da história que está por detrás dessa data, estão aqui os sentidos que podemos construir a partir dela. Isso porque muito mais do que conferir aquilo que de fato aconteceu e determinar a origem da comemoração, podemos problematizar as narrativas e refletir a partir dos sentidos que ela cria. Atualmente, outras tensões e outras rupturas envolvem as mulheres e ainda sinalizamos necessidades variadas para que, por meio de momentos como esses, as informações de qualidade possam circular e proporcionar a conscientização a respeito da diminuição da desigualdade entre homens e mulheres e também entre diferentes mulheres. Somos muitas e diversas. Do mesmo modo que dissemos que um único dia se torna pouco para tratar de nossa espécie, é também uma negligência dizer “a” mulher. Precisamos estar no plural, mulheres, para que a data consiga abarcar todas nós!

 

Portanto, que esse 8 de março seja mais um dia em que possamos dizer que há muito ainda a se fazer por essa “espécie envergonhada”. A objetificação do corpo, um certo modelo de beleza que nos é imposto, a violência doméstica, a desigualdade salarial, a falta de representatividade política, o silenciamento de nossas vozes e tantos outros temas que estão entre as notícias continuam revelando as condições e fragilidades que constituem nossas vulnerabilidades. Por isso, o dia de hoje produzirá uma série incontável de publicações e campanhas. Escrito na esteira de tantas outras mulheres que, diferentemente de mim, lutavam ainda mais por ter suas vozes legitimadas, esse pequeno texto é fruto desses movimentos. Se é possível desejar algo às mulheres no dia de hoje, desejo força e coragem para cumprirmos a profecia do anjo: vamos carregar as bandeiras! Que possamos compreender as lutas que nos dividem, que possamos reconhecer nossos desejos e nos implicar com a direção para qual eles apontam, que possamos fortalecer os laços que nos sustentam, entre mulheres e também com os homens, afinal, a equidade precisa desse jogo de nós, laços e redes para acontecer.

 

Por Raphaela Souza dos Santos
Assessora de Pastoral

 

Referências:

BLAY, EVA ALTERMAN8 de março: conquistas e controvérsias. Revista Estudos Feministas [online]. 2001, v. 9, n. 2 [Acessado 4 Março 2022] , pp. 601-607. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/zSfcjFQPyGjGDwpR53pQcxc/?format=pdf&lang=pt . Acesso em: 28 fev. 2022.

COSTA, Suely Gomes. Onda, rizoma e sororidade como metáforas: representações de mulheres e dos feminismos. (Paris, Rio de Janeiro: anos 70/80 do século XX). Revista INTERThesis, Florianópolis, v. 6, n. 2, jul./dez. 2009. Disponível em:https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/1807-1384.2009v6n2p1. Acesso em: 28 fev. 2022.