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A esperança do “pão nosso de cada dia” que precisa ser dado hoje

 

O comprometimento com o contexto social e econômico em que vivemos é um desafio proposto a toda comunidade a qual reconhece que o mundo poderia ser melhor. Isso é possível porque sonhamos e ideamos um futuro em que a dignidade humana seja realidade. Ideamos um futuro em que haja, para todos, comida, água limpa, energia, um teto e o direito de dividi-lo com quem se ama. Para isso, é preciso reconhecer que existem problemas de acesso à moradia com dignidade, assim como existem diversas pessoas em situação de vulnerabilidade nos dias atuais.

 

A transformação se dá no reconhecer do problema com o ânimo sonhador e desejoso de superação. Dessa forma, talvez possamos buscar inspiração na atitude de mestre e pedagogo que Jesus assume no texto bíblico “O Sermão da Montanha”. Ele está presente nos Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, uma vez que possui fontes históricas comuns para seu processo constitutivo enquanto texto. Porém, é no Evangelho de Mateus que vemos uma característica diferente e um enfoque ético-religioso na promoção da justiça social e no reconhecimento de que “os pobres de espírito também herdarão o Reino dos Céus”.

 

O texto inicia com a narrativa das Bem-Aventuranças: “Vendo ele as multidões, subiu à montanha. Ao sentar, aproximaram-se dele os seus discípulos. E pôs-se a falar e os ensinava, dizendo […]” (Mt 5.1,2). Jesus se pôs a ensinar. Ele subiu as montanhas, sentou-se e ensinou. Para ensinar, precisou de discípulos que atentamente o ouviram. Uma proposta pedagógica que reconhece uma participação ativa entre Aquele que se senta na montanha e quem se senta em torno do Homem que se põe a falar. Ora, mas sobre o que esse Homem se põe a falar? Em toda a trajetória do texto, vemos a defesa de uma comunidade perseguida por instâncias políticas/religiosas no centro da Galileia pós-queda do Templo de Jerusalém, em 70 d.C. Portanto, nessa missão pedagógica assumida por Jesus, era importante ressalvar muitas coisas. Aqui destaca-se: “Felizes os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Felizes os mansos, porque herdarão a Terra. Felizes os aflitos, porque serão consolados” (Mt 5.3-5). Nesse pequeno excerto, temos a menção aos pobres de espírito, mansos e aflitos, adjetivações atribuídas aos grupos perseguidos e injustiçados nesse contexto da comunidade do Evangelho de Mateus.

 

Existe um importante teólogo bíblico chamado Franz Zeilinger, o qual rememora que nesse trecho a expressão “os pobres de espírito” não diz respeito às pessoas “fracas moralmente”, “fracas num âmbito de caráter” ou fracas em termos de “força e resistência psicológica”. Em vez disso,  faz-se referência aos pobres socialmente. Aqui, a expressão diz respeito àqueles esquecidos doentes e pobres, crianças, idosos e mulheres, passando fome literalmente. Então, o Reino do Céus é desses pobres, desses mansos e injustiçados nesse contexto político que, por sua vez, reconheciam sua força na esperança do “pão nosso de cada dia” que precisa ser dado hoje, na perseverança da mensagem da missão de Jesus, em vista do Reino dos Céus.

 

Nessa perspectiva, aprendemos também com a Companhia de Jesus, guiados pelas quatro Preferências Apostólicas Universais, segundo Pe. Arturo Sosa, Superior Geral da Companhia de Jesus, que essas são “o fruto de uma eleição em vista de um maior serviço divino e bem universal”. De acordo com a Segunda Preferência Apostólica, a missão inclui “caminhar com os pobres, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade em uma missão de reconciliação e justiça”. Aqui, mais uma vez, somos desafiados, assim como os discípulos de Jesus foram, a reconhecer o espaço de dignidade reservado a todos aqueles esquecidos e que ainda hoje não possuem direitos básicos, como uma moradia digna.

 

Em nossa missão educativa, inspirados pelos ensinamentos de Jesus e pelas Preferências Apostólicas, sonhamos e ideamos um mundo em que termos como “morador de rua” ou “mendigo” sejam substituídos hoje. O ato de substituir tais conceitos faz parte de um processo de aprendizagem e reconhecimento de um problema histórico e sociológico que acomete milhões de pessoas por todo o mundo. Essa substituição nos permite reconhecer as inúmeras situações que levaram determinado indivíduo a estar naquela condição, por exemplo: guerras, imigrações, desemprego, catástrofes ambientais que fizeram com que perdesse tudo, opressões, fome etc. Assumir a expressão “pessoa em situação de rua”, nesse sentido, possibilita compreender que se trata de uma circunstância a qual, com uma atitude sonhadora, pode ser mudada, transformada. Essa pessoa não está condenada, mas sim passando por um momento de vulnerabilidade, o qual não a torna indigna de mudança e de sonhos; trata-se de uma pessoa com nome, apelido, preferências, habilidades; uma pessoa com história; uma pessoa reconhecida pelos planos divinos, assim como nós.

 

Existem pequenas atitudes que, na rotina, muitas vezes, não parecem práticas para a solução de um problema. Para alguns, uma simples mudança de expressão não garantirá paz mundial, comida no prato de todos e, por conseguinte, a mudança sociológica dessa circunstância. Todavia, existe uma mudança de atitude: não se reconhece o destino fatal, entretanto se reconhece um problema estrutural passível de mudança. Reconhecer o problema é o primeiro passo para sonharmos com medidas práticas hoje a fim de assistir aquela pessoa que precisa ser lembrada que é uma pessoa. Aqui, mais uma vez, a comunidade do Colégio dos Jesuítas, em sua missão educativa, propõe o projeto da Ronda Noturna. Por meio do trabalho de organização da Formação Cristã, em diálogo com estudantes do Ensino Médio, egressos, professores, professoras e a Associação de Pais do Colégio, há a produção de refeições e lanches, além da realização de campanhas de agasalho e roupas em geral; também é feito o acolhimento das demandas ouvidas daqueles que estão em situação de rua para promoção de iniciativas que possam amenizar tal condição.

 

Todos nos possuímos o direito de usufruir condições básicas de sobrevivência como alimentação, água potável, roupas, teto, banheiro e tantos outros itens que para alguns são comuns, mas que para muitos ainda são luxos. Esse direito nos possibilita a dignidade de estarmos presentes nos diferentes espaços e círculos sociais e de exercermos as nossas potencialidades como pessoas humanas.

 

A necessidade de mudança é para hoje, amanhã e sempre.

 

Prof.ª Maiara Rúbia Miguel

Professora de Ensino Religioso – Unidade III

 

 

Fonte:

BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985.

ZEILINGER, Franz. Entre o Céu e a Terra: Comentário ao Sermão da Montanha (Mt 5-7). São Paulo: Paulinas, 2008.

Companhia de Jesus apresenta as quatro Preferências Apostólicas Universais. IN: https://www.jesuitasbrasil.org.br/2019/02/19/companhia-de-jesus-conhece-as-quatro-preferencias-apostolicas-universais/. Acesso em: 18 ago. 2022.