Tradicionalmente, entende-se que o termo folclore seja um neologismo de folk-lore, no qual o vocábulo inglês folk significa “gente” ou “povo” e lore significa “conhecimento”. Assim, pode ser entendido como um conhecimento tradicional de um povo. Sua primeira utilização remete-se ao século XIX, quando Ambrose Merton (pseudônimo do arqueólogo Willian Thoms) teria enviado uma carta à revista londrina “The Atheneum”, que a publicou em agosto de 1845 usando o termo.
Porém, o interesse pelo folclore nasce muito antes, no fim do século XVIII, quando autores como os Irmãos Grimm e Herder iniciaram estudos acerca da poesia tradicional alemã. Através desses estudos, foi desvelada uma cultura popular que, rapidamente, passou a ser colocada em oposição à cultura das elites e das instituições oficiais, considerada erudita.
Da Alemanha, esse interesse despertou a curiosidade de estudiosos de outros países e se espalhou em círculos de estudos de outras formas culturais, como as músicas, as práticas religiosas etc. No início da organização sistemática desses saberes populares, os estudiosos adotaram métodos aplicados ao estudo da cultura erudita, fato que inviabilizava compreensões mais profundas dos modos de ver o mundo encarnadas naquelas narrativas campesinas.
Assim, o resultado desses primeiros estudos reforçou a dicotomia erudito x popular, produzindo, consequentemente, uma ideia de hierarquia na qual o erudito se tornou melhor do que o popular. A palavra folclore passou a ser utilizada para se referir às tradições, aos costumes e às superstições das classes populares, inferiorizadas. Mais tarde, a palavra folclore passou a ser relacionada a toda a cultura nascida principalmente nessas classes, dando ao folclore o status de histórias não escritas de um povo.
Mesmo com o avanço da ciência e da tecnologia, anos mais tarde, a influência do pensamento positivista do século XIX contribuiu para dignificar as tradições populares, entendendo-as como um continuum em uma cadeia ininterrupta de saberes que deveria ser apreciada para se entender a sociedade moderna. Houve, portanto, uma conscientização de que a cultura popular poderia desaparecer devido ao novo modo de vida urbano-industrial, seu estudo se espalhou, ao mesmo tempo em que ela passou a ser usada como elemento principal em obras artísticas, despertando o sentimento nacionalista dos povos.
Não demorou muito para que os estudos do folclore se estendessem às Américas, nos Estados Unidos, em 1888, William Wells Newell, Mark Twain, Rutherford Hayes e um grupo de outros interessados fundaram a Sociedade Americana de Folclore (do inglês “American Folklore Society”). Essa instituição publica um jornal até hoje, o Journal of American Folklore. A contribuição desses estudiosos estadunidenses ocorreu através de pesquisas apoiadas por universidades, o que definiu novas metodologias e lançou as bases para a fundação do folclorismo como uma nova especialidade científica, ao lado da antropologia.
Aqui no Brasil, os primeiros interesses levaram aos primeiros registros escritos de tradições orais, depois se passou a estudar a música, e mais tarde as festas sazonais. Nesse contexto, diversos artistas ligados à elite urbana brasileira passaram a lançar mão de elementos da cultura popular em suas criações destinadas aos círculos ilustrados, como parte de um projeto, estimulado e desenvolvido pelo governo de Dom Pedro II. A ideia era construir uma identidade simbólica nacional que poderia contribuir para a colocação do país entre aqueles considerados ‘civilizados’.
Na verdade, a elite nunca foi inteiramente descolada da influência da cultura popular, porém obras como, por exemplo, I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, e a música de Luciano Gallet e Alexandre Levy deram destaque a temas do folclore brasileiro no contexto das artes cultas. Desde então, o interesse pelo assunto só cresceu, e, em vários campos, artísticos e acadêmicos. Vale destacar que o folclore interpretado pela elite branca urbana acabou sendo adaptado a fim de naturalizar relações sociais de exploração.
Com o aumento dos movimentos nacionalistas, novos desdobramentos dos estudos dos saberes populares surgiram, e, com o surgimento do Modernismo, o folclore passou a ser visto como a verdadeira essência (muitas vezes “embranquecida”) da brasilidade. Procurando colocar o folclore em diálogo com as ciências humanas e sociais, que naquela altura nasciam no país, Mário de Andrade, um dos líderes do Modernismo brasileiro, passa a ser considerado um grande pesquisador do folclore nacional.
Outros nomes influentes ligados ao movimento modernista que podem ser citados são: os pintores Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral e o músico Villa-Lobos. Estes também incorporaram elementos do folclore em suas obras de maneira destacada. Quando Mário dirigiu o Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, entre 1935 e 1938, criou a Sociedade de Etnologia e Folclore, abrindo cursos para a formação de pesquisadores, como Lévi-Strauss.
Em meados do século XX, foram atraídos para esse movimento Cecília Meireles, Câmara Cascudo, Edison Carneiro, Florestan Fernandes e Gilberto Freyre. Além de estrangeiros como Roger Bastide e Pierre Verger. Nessa altura, o ‘movimento folclorista’ institucionalizou-se com a criação da Comissão Nacional de Folclore (CNF), fundada em 1947 por Renato Almeida, através de recomendação da UNESCO. Naquele ano, o folclore se inseria nas iniciativas em favor da paz mundial.
O folclore ganha status de elemento de compreensão entre os povos, já que, ao mesmo tempo, incentivava o respeito pelas diferenças e permitia a construção de identidades diferenciadas. Mais de uma década depois da criação da CNF, em 1958, foi instituída pelo Ministério da Educação a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Fato que incentivou debates e pesquisas através de comissões estaduais de folclore, engajando colaboradores do interior. Esse intercâmbio cidade-campo foi importante para que fosse reconhecida a importância e validade da intimidade dos colaboradores do interior com a cultura interiorana, mesmo que não tivesse uma especialização profissional.
Os folcloristas passaram a contar, a partir de 1961, com a Revista do Folclore Brasileiro, que se tornou um importante meio de divulgação e discussão do tema. A revista circulou até 1976 totalizando 41 volumes e se tornou uma incentivadora de pesquisas. Porém, apesar de tantas conquistas do folclorismo brasileiro, ainda não possuía a credibilidade que merecia. Ao longo da segunda metade do século XX, algumas polêmicas surgiram, e, aos poucos, o folclorismo foi perdendo espaço sendo afastado do ambiente acadêmico, no qual se consolidava. Alguns professores permaneceram ligados às universidades, porém a disciplina foi sendo direcionada para um subcampo das ciências sociais.
Segundo Claudia Marcia Ferreira, Diretora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, a situação do folclorismo ficou pior com o golpe militar de 1964, na ocasião, houve a demissão de Edison Carneiro do cargo de diretor da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, até então, o principal folclorista. A Campanha foi fechada no dia primeiro de abril com um cartaz na porta que dizia: “Fechado por ser um antro de comunistas”. Com isso, encerrava-se todo um ciclo do folclorismo brasileiro iniciado há cem anos.
Em 1965, por força de um decreto, passou a ser comemorado em todo o território nacional, o Dia do Folclore. Para muitos pequenos brasileiros, a data só é lembrada no ambiente escolar e só em agosto. Já para a população adulta, de maneira bastante superficial, infelizmente, a ideia comum de “folclore” limita-se a um conjunto de narrativas fantásticas criadas a partir do que se considera “cultura popular do interior”.
Renato Almeida, em 1979, se torna o diretor da nova Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, finalmente reaberta e incorporada à Funarte, que se transformou no Instituto Nacional do Folclore. Em 1990, o Instituto passou a ser denominado Coordenação de Folclore e Cultura Popular, hoje chamado Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, vinculado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Os esforços do final do século de retomada de um novo ciclo do folclorismo brasileiro ganham força atualmente. Pesquisadoras e pesquisadores negros e indígenas, através de seus estudos e de sua perspectiva, buscam contribuir com o debate apresentando novos olhares para o tema.
Infelizmente, segundo muitos desses autores, sem muita reflexão ou senso crítico, chegam às cidades versões desterritorializadas de estórias do campo. Na cidade, tais narrativas passam por um processo de desvalorização e são reduzidas, muitas das vezes, a lendas vazias, descoladas de um sentido simbólico maior. Fato verificado, especialmente, quando se trata das manifestações culturais de populações subalternizadas nas quais os personagens são negros, indígenas ou mulheres.
Segundo Clíssio Santana, historiador, “o problema está na construção dessas práticas, que, muitas vezes, se não na maioria delas, é construída de forma estereotipada, racista, homofóbica, misógina e preconceituosa.” Para o autor, repensar essas narrativas é de extrema importância para que possamos utilizar esse enredo de forma positiva, uma vez que as narrativas folclóricas são utilizadas, principalmente, com crianças em idade escolar: “não existe ingenuidade na construção do Saci-Pererê, por exemplo, onde a imagem do ‘negro malandro’ que não é e nem merece ser levado a sério é reforçada”.
Assim, como trabalhar para uma real valorização destes saberes tradicionais? Santana nos ajuda a responder a essa questão ao evidenciar, mais uma vez, a personagem do Saci-Pererê, a qual, segundo o autor, “é fruto de uma visão racista, europeizada e preconceituosa sobre o negro e o seu lugar na história do Brasil”. Professores comprometidos com uma educação antirracista, por exemplo, podem trabalhar tal personagem através de suas características clássicas (inteligência, astúcia, criatividade, ludicidade) de modo a valorizá-lo.
Lendas e mitos bem conhecidos como Boitatá, Capelobo, Cobra-grande, Corpo-seco, Boto, Cuca, Curupira, Lobisomem, Iara, Mandioca, Mapinguari, Mula sem cabeça, Negrinho do Pastoreio, Vitória Régia, entre outras devem ser valorizadas e respeitadas como outras formas de interpretar o mundo, muitas são para os indígenas, por exemplo, manifestações sagradas de algo que já existiu em algum momento ou que ainda existe.
A Constituição do Brasil protege o folclore através dos artigos 215 e 216, que tratam da proteção do patrimônio cultural brasileiro, ou seja, “os bens materiais e imateriais, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Nós, brasileiros, com a intenção de contribuir com essa proteção, devemos exercitar nossa alteridade frente a essas narrativas, dando espaço para novas formas de ver o mundo.
Por Henrique Lage Chaves
Professor